Nathália Souza Martins de Oliveira

Sobre a autora

Déficit
03/04/2024 às 13h09

“Meu filho é TDAH.” Confidenciou-me o pai do menino no início do curso de Teatro. “Se ele causar qualquer transtorno, vou entender ele não poder ficar”. Fomos então à prática. Entre outras crianças da turma, Bruno não cumpria regras dadas, Felipe não se concentrava, Henrique não continha seus movimentos e Bento não parava de correr a esmo. Nenhum deles era o filho daquele homem.

A classificação diagnóstica de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (DSM – 5, 2014) representa atualmente um dos principais fatores que incidem sobre a demanda de tratamento na clínica com crianças. Comumente são encaminhadas pela escola por razões ligadas a comportamentos impulsivos/agressivos e/ou rendimento insatisfatório, não raro, o diagnóstico é sugerido a partir da própria escola, já então familiarizada com esta classificação dos transtornos do neurodesenvolvimento consolidada também no campo da pedagogia.

Mais especificamente, a depressão e o TDAH se destacam entre outras “disorders” nos últimos 40 anos por protagonizarem a cena do sucesso terapêutico psicofarmacológico como resposta a incapacidade produtiva do sujeito, funcionando como motores que impulsionam a medicalização da vida. Em outras palavras, uma vez suposto no indivíduo o déficit de uma substância que responderia pelo bom desempenho de sua capacidade produtiva e adaptativa, deve-se acomodá-lo em uma nosografia diagnóstica que encerre nele o porquê de seu comportamento desviante.

O tema é vasto, espinhoso e cheio de atravessamentos de ordem política e econômica nos campos da saúde e da ciência. Por isso, me deterei ao aspecto subjetivo, ou seja, em como um diagnóstico psicológico pode ficar “malparado” na vida de uma pessoa, especialmente na infância.

Se por um lado o diagnóstico aplaca uma angústia por resposta e orientação, por outro, ele tende a aderir como identidade com todas as suas complexificações egóicas no jogo de reconhecimento que vão desde um vaticínio de incapacidade para a vida até objeto de desejo no mercado dos transtornos.

Que atire a primeira pedra aquele que nunca se perguntou se tem algum transtorno ou déficit de qualquer coisa. De maneira correlata, quem nunca cedeu à tentação de diagnosticar o próximo numa situação de desafeto? Adianto que dificilmente alguém escaparia ao alcance dos manuais tamanho requinte pormenorizado de classificações e conjugações de comorbidades contemplados.

Esse entendimento pretende reduzir o “problema” ao funcionamento bioquímico destituindo o sujeito de um saber-fazer com seu sintoma articulado ao mundo e às relações que sustentam o laço com a vida. E esta, sim, tem sido uma atual preocupação considerável na clínica: a fragilidade do laço com a vida.

Clinicamente, a narrativa hegemônica do “déficit” contribui para o empobrecimento dos recursos psíquicos de um sujeito por isentar os atores envolvidos na produção do sintoma e consequentemente desqualifica as iniciativas endereçadas a estes atores que poderiam constituir tratamentos bem-sucedidos, diversificados e singulares para além de uma medicação ou protocolo.

Nesse sentido, a escuta clínica se aproxima da prática teatral. O “material dourado” de ambas é justamente o desvio que nos humaniza, o transtorno que nos causa e o lugar dado a isso é oposto ao do silenciamento. Trata-se de um lugar construído pelo sujeito no jogo com o coletivo para levar à cena nossas mazelas, imperfeições, incompletudes e déficits produzindo um endereçamento do sofrimento à esfera pública e, isto sim, pode, eventualmente, causar transtornos ao entorno.

Assim foi com Bruno, Felipe, Henrique, Bento e, também, com o menino “TDAH”. Bruno não cumpria regras dadas, então inventou algumas para si próprio. Felipe não se concentrava, então passou a me alertar para a necessidade de intervalo. Henrique não continha seus movimentos e fez disso o estilo assumido de um personagem inquieto. Bento não parou de correr até algum aluno finalmente chutar sua bola imaginária e jogar um futebol mímico com ele. O menino, que fora dali era “TDAH”, no palco, era André. Não sem transtornos, as crianças decoraram texto, aprenderam marcas, compareceram aos ensaios e apresentaram um espetáculo para 450 pessoas, mas, sobretudo, elas protagonizaram a cena de suas vidas.

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