Nathália Souza Martins de Oliveira

Sobre a autora

Facilidade, Verdade e Felicidade
12/04/2024 às 13h59
"A Verdade saindo do poço” de Jean-Léon Gérôme.

“É mais fácil ser infeliz do que ser feliz.” A fala era de um sacerdote ancião que cerimoniava um casamento religioso. Suas palavras soaram um tanto indigestas para a ocasião e logo foram solenemente obliteradas pelos participantes que, descontes com o dito, acabaram por perdoar o deslize com facilidade atribuindo-o à idade avançada do sacerdote. A verdade comumente é tratada como um velho que diz coisas inconvenientes e na hora errada.

Esta e outras situações embaraçosas do cotidiano nos fazem pensar em como a verdade e a felicidade parecem compartilhar certa dose de dificuldade para estarem juntas na mesma cena. Cada qual ao seu turno, a verdade costuma conflitar com os recortes ideais que extraímos da realidade. Ela pode ser feia, cheirar mal, fazer ruído e torta de climão. Mas não é tão óbvio supor o mesmo mecanismo sobre a felicidade, coisa que, ao contrário da verdade, se almeja, se deseja e se busca voluntariamente. Então, como ser infeliz é mais fácil do que ser feliz?

Algum caminho podemos encontrar se reconhecemos no meio deste imbróglio a disposição psicológica um tanto automática para foracluir a dimensão problemática que a verdade pode trazer para a vida. Apesar da construção da ideia de felicidade ser diferente para cada sujeito, ela parece não contemplar o mal-estar que a verdade de cada um revela. Assim, inconscientemente, o caminho automático, mais fácil e mais curto seria não lhe dar ouvidos.

Porém, não são poucas as vezes em que a busca pela felicidade nestes termos, traduz-se, precisamente, no reconhecimento do sentimento de infelicidade. Clinicamente, subjaz nestes relatos notícias de verdades desconhecidas e diametralmente opostas à noção ideal de felicidade: ódio, trauma, insegurança, traição, melancolia, mesquinharia, inveja, agressividade e masoquismo em diversas conformações.   

Em mundo de facilitações tecnológicas propagadas mercadologicamente como objetos que carregam a promessa de felicidade assistimos ao crescimento assintótico dos estados generalizados de infelicidade. Também comparece nesta dimensão discursiva o mesmo mecanismo que precisa foracluir as muitas verdades trágicas e repugnantes do mundo e que influem nas nossas vidas para reduzir a felicidade à facilidade de consumir um objeto individualmente.

Se ser infeliz é mais fácil do que ser feliz, a felicidade parece, ironicamente, estar mais próxima da dificuldade que é acomodar a verdade na vida, do que, à princípio, da facilidade de ignorá-la.

Ao final da cerimônia busquei o sacerdote para cumprimentá-lo e elogiá-lo pelo corajoso sermão. Para minha surpresa aquele senhor pareceu tentar um flerte mais ou menos disfarçado de atenção generosa à moda antiga.  “O senhor está me cantando?”. Perguntei pelo bem da verdade. O ancião recuou um passo, virou-se e foi embora. É. A verdade também é comumente tratada como uma mulher que diz coisas inconvenientes e na hora errada.

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