Nathália Souza Martins de Oliveira

Sobre a autora

Mãe Possível
27/04/2024 às 11h03

Na clínica com crianças parte do trabalho se dá a partir da escuta da família. Apesar de o tratamento privilegiar o sujeito da criança, a escuta da família é imprescindível na medida em que toda criança vem ao mundo inscrita em um contexto específico de arranjo familiar, estrato socioeconômico, estrutura cultural e enquadre histórico que são transmitidos pelas pessoas que participam da vida da criança direta ou indiretamente. Todos estes elementos têm sua contribuição maior ou menor no sintoma da criança.

Mesmo assim, na maioria dos casos em consultório as crianças são trazidas quase que exclusivamente pelas suas mães. Apesar disto, o relato delas frequentemente revela sentimento de culpa pelos sintomas dos filhos. Mesmo cuidando, educando e sustentando é notório como as mães tendem a se reconhecerem no banco dos réus. Até aquelas que podem orgulhar-se de seus esforços e êxitos apesar de tantas dificuldades e de diversas ordens, no frigir dos ovos, a culpa está lá no fundo da bolsa ao lado do boleto que não pagou, da agenda insuficiente, da carteira vazia e do celular onde apitam os grupos de pais.

Não é preciso ser profissional da saúde para verificar que o peso da maternidade em nossa cultura está muito além das tarefas inexauríveis ligadas aos cuidados de uma criança ou do desejo ou não de ter filhos. Tais questões já seriam suficientemente exaustivas, mas curioso é constatar como apesar de transpostos estes aspectos, não há limite na régua subjetiva da exigência materna. Logo, o fracasso é dado de saída por melhor que seja o resultado.

Podemos reconhecer no discurso social uma certa incidência na compleição do sentimento de culpa das mães. Quem nunca escutou “onde estava a mãe quando a criança se machucou?”  ou quem nunca culpou a mãe pelos infortúnios da própria vida? Se trocarmos a palavra “mãe” por “mulher” quase não se altera o sentido do endereçamento da culpa pela falta ligada ao trabalho de cuidado e presença. O estatuto da maternidade parece apenas agravar os termos de exigência que já estão postos para qualquer mulher.

Apesar dos importantes avanços ligados à emancipação econômica das mulheres, nossa cultura não emancipou a mulher da expectativa de disposição ilimitada para o cuidado e para a presença, menos ainda, as mães. Muitas vezes o que se designa na atitude empoderada de uma mãe que “dá conta de tudo”, na verdade não passa de um sedutor disfarce para a manutenção da mãe no mesmo status quo subjetivo do início do século XX.  Mãe e limite, mãe e ausência, mãe e vida própria, ainda parecem ser significantes mal encadeados na subjetividade da nossa cultura.

A ironia do cenário é que no campo da saúde mental verifica-se que o esforço de não contemplar a falta seja na mãe ou na mulher não impedirá que ela se coloque, mas permitirá sim que ela seja mal acomodada e compareça na forma de lamentações, exigências, culpas, remorsos, sintomas e cobranças sem fim. A mãe ideal é inalcançável, mas a mãe possível pode estar mais perto.

 Função materna não precisa ser exercida unicamente pela mãe ou pela genitora ou pela mulher. Quanto mais sujeitos se implicam nos cuidados de uma criança, mais a mãe pode achar-se em condições de recuar da exclusividade desta função e mais recursos essa criança poderá mobilizar para se constituir no laço social de forma emancipada.

A falta, não o desamparo, talvez seja o bem simbólico mais amoroso que se possa transmitir para um filho.

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